A "FILOSOFIA DO BUFÃO" E A MISSÃO DA IGREJA
“A filosofia do bufão é a filosofia que, em cada época, denuncia como duvidoso aquilo que parece ser inabalável. Declaramo-nos a favor da filosofia do bufão – aquela atitude de vigilância negativa frente a qualquer absoluto.” Creio que vim de fábrica com o chip da filosofia do bufão. Antes mesmo de conhecer este pensamento do filósofo polonês Leszek Kolakowski sempre desconfiei do senso comum. Para quem porventura se preocupa comigo, advirto estar em boa companhia – também estou alinhado com o apóstolo Paulo: “examine tudo e retenha o que é bom”, pois “contra a verdade nada pode senão a verdade”. Desta vez questiono o conceito de missão da igreja associado à grande comissão. Discordo dos que afirmam que a missão da igreja é apenas fazer discípulos. Primeiro porque a declaração de Jesus registrada em Mateus 28.18-20 é apenas uma das diversas referências bíblicas de onde podemos deduzir a missão da Igreja. Segundo, porque acredito que a teologia é a síntese das diversas referências bíblicas a respeito de um tema. E finalmente por considerar reducionista a equivalência da tarefa de fazer discípulos com a missão da igreja. As referências bíblicas utilizadas para deduzir a missão da igreja são diversas, sendo as mais utilizadas as dos evangelistas, como por exemplo Mateus 28.18-20; Marcos 16.15; Lucas 24.46-48; João 20.21; Atos 1.8. É fácil perceber que cada um destes textos possibilita um resultado diferente para o enunciado definidor da missão da igreja. O registro de Mateus possibilita a fórmula “fazer discípulos”, implicando necessariamente o ensino detalhado de todas as ordens de Jesus. Marcos indica a proclamação do evangelho como tarefa essencial, e nesse caso o conteúdo do kerigma é a boa notícia da chegada do reino de Deus. Lucas também sublinha a proclamação, mas o conteúdo do kerigma é menos abrangente, restrito à convocação ao arrependimento para perdão dos pecados. João abre um leque extraordinário quando afirma que a missão da igreja deve ser derivada da missão de Jesus – “assim como”, o que remete a declarações do tipo: “Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Marcos 10.45), ou ainda: “Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Lucas 19.10), de onde poderíamos deduzir que a missão da igreja se sustentaria em três ações concomitantes: buscar, servir e salvar. Por fim, em Atos (1.8) o evangelista Lucas aponta na direção do testemunho a respeito da pessoa e obra de Jesus como aspecto essencial da missão. Alguém poderia afirmar que em essência a missão da igreja é fazer discípulos, e para tanto deve buscar e servir o perdido, anunciando a boa notícia da chegada do reino de Deus, convocando ao arrependimento para a remissão dos pecados, testemunhando em todo lugar a respeito de Jesus, visando a salvação de todo o que crê. Esta compreensão, entretanto, é bem mais complexa do que a mera declaração “fazer discípulos”. A sugestão de que as variantes presentes nas diversas narrativas contém ou explicam o significado completo do “fazer discípulos” é em si uma interpretação do conjunto de referências de onde se pode deduzir a missão da igreja. Isto é, dizer que “fazer discípulos” significa de fato isso e aquilo é elaborar teologicamente juntando, como peças de um quebra-cabeça, citações daqui e dali, amarrando um conceito no outro de maneira a buscar um sentido mais completo a partir da soma das partes afins. Duas perguntas surgem subjacentes a esse exercício. A primeira quer saber quantas e quais são as peças do quebra-cabeça, isto é, quais referencias bíblicas devem ser coligidas. A segunda interroga a respeito do resultado final do quadro a ser montado, isto é, questiona se o nome do quadro é mesmo “fazer discípulos” ou se haveria possibilidade de organizar as peças de maneira a chegarmos em outro enunciado definidor da missão da igreja. Uma leitura mais ampla da Bíblia Sagrada, disposta inclusive a buscar as referências do Antigo Testamento como elementos constitutivos da missão do Messias transferida para a igreja, nos levaria necessariamente a concluir duas coisas: a primeira é que existem outras tantas narrativas negligenciadas pelo senso comum dos que definem a missão da igreja, e a segunda é que incluídas e consideradas estas outras peças do quebra-cabeça o resultado final será não apenas diferente como também e principalmente muito mais abrangente do que a mera declaração “fazer discípulos”. Consideremos, por exemplo, apenas mais três referências bíblicas: Mateus 5.13-16; Lucas 4.17-21 [Isaías 61.1-4]; e Efésios 1.16-22. Estas três referências apenas já são suficientes para ampliar completamente a perspectiva de compreensão da missão da igreja. A narrativa do Sermão do Monte, onde Jesus identifica seus discípulos como sal da terra e luz do mundo, deduzindo estas funções da identidade dos discípulos descritas nas bem-aventuranças, amplia o horizonte de compreensão da missão, incluindo a necessária transformação ou no mínimo afetação da realidade conjuntural – a terra e o mundo – onde os discípulos estão presentes. A narrativa de Lucas, quando Jesus aplica para si mesmo a profecia de Isaías, inclui na ação e presença messiânica a liberdade dos cativos e oprimidos, dando margens a interpretações diversas, desde os que espiritualizam os termos para que se refiram apenas à escravidão e opressão espirituais, até os que compreendem esta escravidão e opressão como incluindo as dimensões sociais, econômicas e políticas [a mesma discussão ocorre na hora de interpretar aqueles que Mateus chama de “pobres de espírito” e Lucas apenas de “pobres” (Mateus 5.3; Lucas 6.20)]. O texto de Efésios mais se parece como uma elaboração que o apóstolo Paulo faz da narrativa de João: “assim como Pai me enviou eu também vos envio”, pois vincula o propósito de Deus para Jesus com a relação entre Jesus e a Igreja. O apóstolo afirma que o propósito final de Deus é fazer Jesus Senhor sobre todas as coisas, “acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro”, e para tanto não apenas “sujeitou todas as coisas a seus pés”, como também “constituiu Jesus como cabeça da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”. A igreja é o instrumento através do qual Jesus exerce sua autoridade sobre todas as coisas. Ainda que exista certa divergência nos limites implicados, está claro que a presença e atuação de Jesus e sua Igreja no mundo extrapolam a relação pessoal do indivíduo com Deus. Considero reducionista a definição da missão da igreja que se esgota no esforço de chamar pessoas ao arrependimento para remissão dos pecados e ensinar a elas todas as coisas que Jesus mandou, que resume a fórmula “fazer discípulos”. É verdade que alguns missiólogos se defendem dessa pecha de reducionistas. Utilizam basicamente dois argumentos. O primeiro popularizado na máxima “converta-se o homem e a sociedade se endireitará”, sugerindo que as implicações sociais, econômicas e políticas do evangelho não dizem respeito à missão da igreja, mas à atuação dos cristãos na sociedade. A igreja se preocupa em cumprir sua missão: “fazer discípulos”, e os discípulos se ocupam em transformar, na medida do possível, a sociedade. O segundo argumento utilizado contra a acusação do reducionismo se baseia no princípio da evangelização por presença, que preconiza o testemunho silencioso, através da vida íntegra e do serviço, como necessários à conquista do direito de falar e fator facilitador do anúncio do evangelho. Este raciocínio mantém a dicotomia entre evangelização e responsabilidade social, dando primazia ao testemunho verbal do conteúdo do kerigma sobre os atos de justiça. Nessa perspectiva a igreja é vista como uma comunidade diaconal, mas o serviço cristão se presta a oportunizar e autenticar a pregação (verbal) do evangelho. Mais uma vez fica patente que a mera citação de textos bíblicos é insuficiente para a definição da missão da igreja, sendo necessária uma elaboração teológica que promova o sentido unívoco das diversas narrativas. Nesse caso, teologia por teologia, opto por descartar aquela que conclui que a missão da igreja se resume a fazer discípulos que viverão na sociedade de modo digno para que o anúncio do evangelho seja possível e credibilizado. Considero que as expressões “fazer discípulos” e missão da igreja apontam realidades distintas e não podem ser consideradas sinônimas. Estamos, portanto, diante de pelo menos dois paradigmas, um que resume a missão da igreja na expressão “fazer discípulos” (paradigma da Grande Comissão) e outro que considera a missão da igreja em termos mais abrangentes (paradigma da Missio Dei). O paradigma da Grande Comissão segue mais ou menos o seguinte esquema: (1) testemunho de presença (vida íntegra e de serviço) como pré-evangelização; (2) testemunho verbal do “plano da salvação”; (3) batismo: integração dos convertidos à igreja; (4) discipulado; (5) envio do discípulo para testemunho de presença (vida íntegra e de serviço) como pré-evangelização e testemunho verbal do “plano da salvação”. Nesse paradigma, a salvação é eclesiocêntrica e se resume à conversão pessoal e individual: salvo é todo aquele que crê na mensagem do evangelho, se arrepende para a remissão de seus pecados, e passa a viver integrado na comunidade cristã, sob os imperativos éticos do evangelho e o compromisso de propagar e difundir a mensagem de salvação. Uma derivação deste paradigma ocorre quando se acrescenta o conceito de plantar igrejas, mas ainda assim o conceito de missão fica atrelado à igreja e sua expansão. O paradigma da Grande Comissão é uma teologia da missão baseada em conceitos como: salvar almas, aceitar Jesus como Salvador pessoal, evangelismo pessoal, testemunho verbal, primazia da evangelização (compreendida como anúncio verbal) sobre a responsabilidade social, plantar igrejas, expansão missionária,e crescimento da igreja. O paradigma da missio Dei tem origem em Karl Barth, na Conferencia Missionária de Brandemburgo em 1932. A influência do seu pensamento atingiu o auge na Conferência do Conselho Missionário Internacional ocorrida em Willingen (1952). De acordo com David Bosch (Missão transformadora. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002), “foi lá que a idéia (não o termo) da missio Dei emergiu, pela primeira vez, de maneira clara. Compreendeu-se a missão como derivada da própria natureza de Deus. Ela foi colocada, pois no contexto da doutrina da Trindade, não da eclesiologia nem da soteriologia. A doutrina clássica da missio Dei como Deus, o Pai, enviando o Filho, e Deus o Pai e o Filho, enviando o Espírito foi expandida no sentido de incluir ainda outro ‘movimento’: Pai, Filho e Espírito Santo enviando a igreja para dentro do mundo”. O novo paradigma da missio Dei descarta a idéia de missão restrita ao discipulado individual e supera o reducionismo da salvação como livramento dos indivíduos das penas eternas. A igreja não é para o mundo, nem mesmo espaço de fuga do mundo, mas o próprio movimento de Deus para dentro do mundo, e nesse sentido, igreja com o mundo. A missio Dei se relaciona com a missão da igreja fazendo desta última a comunidade solidária com o Cristo encarnado e crucificado, bem como ressurreto e exaltado: igreja como plenitude da humanidade e epifania. Bosch conclui que “o propósito primeiro das missiones ecclesiae não pode, por conseqüência, ser simplesmente a implantação de igrejas e a salvação de almas; pelo contrario, ele deverá ser o serviço à missio Dei, representar a Deus no e diante do mundo (…) Em sua missão, a igreja é testemunha da plenitude da promessa do reino de Deus e é partícipe da batalha contínua entre esse reinado e os poderes das trevas e do mal”. Desenvolvendo e dando contornos práticos ao conceito da missio Dei, Wesley Ariarajah, do Sri Lanka, acredita que não podemos “compreender a missão simplesmente como uma mensagem que trazemos ou atividades que fazemos no mundo, mas como participação com Deus e todos os outros ao trazer cura e integralidade, justiça e paz, reconciliação e renovação no mundo” (Hope S. Antone. Rumo a um novo paradigma nos conceitos de missão. Theologies and Cultures, vol V, no.2, December, 2008). Ariajarah sugere quatro aspectos da missão: os agentes e o objetivo da missão, a natureza da comunidade da fé em missão, e o conteúdo da missão. Antone acrescenta um quinto aspecto: o espírito da missão. O paradigma da missio Dei implica a afirmação de que “cristãos estão em missão porque Deus é “de antemão presente e ativo no mundo, atraindo-o a si mesmo”, conforme Ariarajah. Deus é o principal agente da missão, e a executa através de muitas maneiras, não necessariamente exclusivamente debaixo do guarda-chuva da igreja. A participação de Deus no sofrimento humano extrapola a ação dos cristãos e “coloca esta amorosa, cuidadora, julgadora e apaixonante presença e missão de Deus no coração de todos os afazeres humanos, independentemente de suas ambigüidades”, diz Ariajarah. Deus age através da igreja, com a igreja, além da igreja, apesar da igreja, e, de quando em vez, contra a igreja. Caminhando um pouco mais, compreendemos também que o objetivo da missão não pode se restringir a “ganhar almas e plantar igrejas”, pois o conceito de conversão deve ser ampliado da mera adesão a uma outra religião, passando a ser considerada como profunda transformação que exige o engajamento do convertido na missio Dei, afim de promover salvação, libertação, reconciliação e restauração de toda a criação, e não apenas de pessoas/indivíduos. “O novo paradigma de missão vê a conversão como a atividade transformadora do Espírito nas vidas de indivíduos e comunidades, para uma vida orientada para Deus e o próximo, comenta Hope S. Antone. Um terceiro aspecto do novo paradigma diz respeito à natureza da comunidade de fé em missão. O paradigma tradicional, que objetiva a conversão de pessoas está baseado na sugestão de que os cristãos devem ser maioria para que mudanças no mundo sejam percebidas. Esta noção pode receber pelo menos três senões: confunde tamanho com força, acredita no ultrapassado princípio positivista do progresso – mudar o mundo, e desconsidera as imagens bíblicas para a igreja. O êxito da missão não deve ser avaliado a partir do “aumento do número de conversões, batismos ou igrejas construídas como medidas para determinar o sucesso – mas sim o quão bem-sucedidos temos sido ao mostrar o abrangente amor de Deus de tal modo que a comunidade e o mundo em que vivemos possam se tornar muito mais amorosos e justos, como foi o planejado por Deus”, acredita Antone. O conteúdo da missão deve transpor a barreira “de assuntos meramente doutrinários para abordagens espiritualmente profundas”. Ariarajah acredita que “a missão que é baseada nos usuais apelos cristãos de exclusividade ou superioridade e absoluta posse da verdade não tem futuro”, pois “na realidade, tal posição apenas cria mais rivalidade e animosidade entre os adeptos de diferentes religiões”. A igreja não é apenas portadora de uma mensagem, mas advento de um novo tempo. A igreja é sinal histórico do reino de Deus. Sua presença no mundo deve ser uma expressão clara de que o reino de Deus chegou. Por trás do “clamor por uma justiça econômica, paz e reconciliação genuínas, liberdade da violência e opressão e por condutas justas nas relações internacionais, está uma busca espiritual profunda”, diz Ariajarah, e justamente por isso a igreja oferece não apenas uma nova mensagem, mas a si mesma como sinal de um novo mundo (a se consumar na eternidade). Antone sugere ainda que há necessidade uma outra mudança na forma de compreender a missão. A respeito do espírito presente por trás da metodologia ou prática de missão, defende a solidariedade genuína com as pessoas em suas necessidades humanas reais, em detrimento da mera ação proselitista. É urgente a troca do verbo “converter” para “servir”. Os cristão não fomos chamados a convencer pessoas a respeito da vida e obra de Jesus através de argumentos persuasivos, mas a demonstrar Jesus com nosso estilo de vida. O Cristianismo não é um conjunto de ideias – uma ideologia que se espalha pelo discurso, mas uma pessoa, que se expressa através do amor e do serviço dos seus seguidores. À luz dessas reflexões e influenciado pelo movimento de Lausanne e a chamada teologia da missão integral, creio que a igreja – compreendida inclusive e principalmente como comunidade local, está a serviço do Deus em missão, e deve ser um sinal histórico do reino de Deus, levando o evangelho todo para o homem todo, promovendo e protagonizando os frutos do ministério terreno de Jesus: salvação, libertação e restauração integrais, no poder do Espírito Santo, para a glória de Deus. Ed René Kivitz